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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Dona Lourdes



    Após mais uma rotina cumprida, a menina retornava para o seu destino. Naquele dia em específico, o ônibus devia ter atingido a sua lotação máxima, não havia espaço para coisa alguma. Crianças no colo das mães, braços entrelaçados os quais com certa dificuldade esforçavam-se para equilibrar corpos que se encaixavam em espaços milimetrados. Cada pessoa que se levantava do assento desviava, em frações de segundo, todos os olhares dos passageiros que entreolhavam-se. Com o passar do tempo, ela acabou percebendo que existe uma hierarquia para a ocupação desses assentos:

  • Pimeiro os portadores de deficiência,
  • Segundo as mulheres que carregavam crianças no colo,
  • Terceiro as senhoras de rugas, que não precisavam, necessariamente, possuir alguns fios brancos na cabeça
  • Quarto, as muheres que não correspondiam às características anteriores,
  • E em último lugar, os estudantes, como ela.

    Nessa ocasião, um dos lugares estava vago, houve uma dessas trocas de olhares entre a menina e uma senhora silenciosa sentada no banco ao lado. Esse era o sinal, captado rapidamente pelos seus sentidos, sinal esse que a fez ocupar o assento até então vazio. Durante alguns segundos, a menina observou a expressão da mulher, ela parecia triste e solitária, mas não tomou nenhuma iniciativa, permaneceu em silêncio e sorriu para a senhora sentada que para o seu espanto, retribuiu o sorriso que pedia por alguns minutos de atenção e paciência.
    Quando a menina se deu conta, já sabia de toda a trajetória da mulher que dividia o espaço com ela. Seu nome era Lourdes, em cada traço, rugas e marcas desenhadas pelo tempo em sua face, havia uma história a contar que valia a pena ser ouvida por mais simples que fosse. Lourdes era separada e morava sozinha em um quarto nos fundos de uma casa, a guarda dos filhos ficou com o ex -marido no Paraná. A criatura à qual ela se referia com tanto carinho, seria considerada por muitos um ser desprezível e desprovido de qualquer sentimento, sendo ela o homem com quem fora casada por muitos anos. Durante os últimos 15 anos sentiu aquele vazio de uma mãe sem poder zelar pelos seus filhos.
    Além de comentar sobre a saudade que sentia da sua família, a mulher mencionou um homem que conhecera a pouco tempo que a tratava bem, que queria namorar com ela e tentar construir uma vida ao seu lado, mas ela tinha medo, medo de arriscar, de decepcionar-se novamente, depois de tudo o que passou e da perda mais preciosa que ela pôde ter. Em contrapartida, em seu íntimo, a menina tentava balancear os seus conflitos com a vida que Dona Lourdes teve e chegou à conclusão de que seus problemas são do tamanho de uma pulga, então, pela primeira vez percebeu que não estava sozinha no mundo, e que ele estava cheio de pessoas que também possuíam dificuldades para que fossem superadas.
    A menina admirou o prazer de viver estampado nas palavras da mulher que dividia o assento ao seu lado. Descobriu as maravilhas proporcionadas pela superação, constatando que dinheiro não é sinônimo de satisfação pessoal, mas sim tradução de consumo. E foi então que ouviu pela primeira vez uma senhora que devia ter seus 50 anos de experiência falando de amor, da necessidade que o ser humano tem de ser amado e dedicar-se a alguém e simultaneamente desejou viver baseada no amor.
    Em alguns momentos, a menina teve a impressão de estar conversando com uma de suas amigas colégio que falavam sobre sua paixão platônica, mas não, era uma mulher. Uma mulher? Para ela, todas as mulheres estavam acima dela, não sentiam medos, eram fortes e determinadas além de encontrarem-se no mesmo patamar de maturidade. Para a menina foi um choque entre pré conceitos e a realidade que acabara de presenciar.
    A mulher despediu-se, apertou a campainha e desceu as escadas seguindo o seu caminho. Não se sabe ao certo qual fora a escolha de Dona Lourdes depois daquela conversa que tivera com a menina da linha 1.54, mas com certeza, a menina sabia o que desejava a partir daquele dia: percebeu que precisa ter medo de arriscar, mas não por consequência do erro, mas para que não viesse a prejudicar ninguém ao seu redor. O medo é um termômetro de nossos momentos de loucura em função da vida real, se a temperatura está muito elevada a situação torna-se insuportável e se está reduzida ao extremo, perde-se melhor da vida. Por isso, a realidade não é de todo o mal e nem mesmo o que é comum, o que vale é saber regular o termômetro conforme o momento.